Documentos obtidos pelo autor de “Padre Cícero: Poder, Fé e Guerra no Sertão” nos arquivos do Vaticano mostram que a Igreja Católica deu a largada para criar um santo brasileiro, com a intenção de conter a ofensiva evangélica no país, o que pode abrir terreno para uma nova era de exploração política e comercial da religião no Nordeste.
O livro de 544 páginas começou a chegar às livrarias, nesta quinta-feira (12). Lançado pela Companhia das Letras, a obra é fruto de um trabalho de pesquisa de dois anos nos arquivos da Igreja Católica. Atualmente, no Vaticano, há um processo de reabilitação do padre Cícero (1844-1934), excomungado no passado devido a seus relatos de milagres.
Em podcast, o autor Lira Neto conta que o papa Bento 16 abriu o processo de reabilitação do padre, que morreu proibido de batizar, casar, celebrar missa, ouvir confissões, entre outras tarefas sacerdotais.
Ele cita os passos do processo de reabilitação rumo a uma canonização. O primeiro passo é a anistia, em que o padre será absolvido das acusações de forjar milagres. Depois, avança para uma beatificação até ser saudado como santo, em um processo que pode durar décadas, mas que pode ser acelerado devido aos planos do Vaticano de evitar uma perda mais acentuada de devotos para as igrejas neopentecostais.
O biógrafo diz que já surgem sinais mais claros da reabilitação, como a elevação da igreja construída por Cícero em Juazeiro do Norte (CE) à condição de basílica, bem como a instalação de um vitral ao lado dos santos católicos na capela em que o corpo do padre está enterrado.
Ele diz que existe uma mercatilização da fé usando a imagem de Cícero, mas também lembra o aspecto social e transgressor da questão: cerca de 2,5 milhões de devotas já consideram um santo o “padim Ciço”, como dizem, na contramão das ordens da cúpula católica.
“É uma fé insubmissa, indomável, que não se enquadra nos rituais oficiais da igreja”, afirma o biógrafo.
Jornalista Lira Neto lança biografia de Padre Cícero
Tudo começou em 1889, quando Cícero, então um jovem sacerdote de Juazeiro do Norte, ao oferecer a comunhão à beata Maria de Araújo, viu a hóstia simplesmente… sangrar. O evento se repetiria inúmeras vezes, com diferentes audiências. Médicos foram chamados, mas não conseguiram explicar o fenômeno, considerado, a partir de então, um milagre pela população local. Os homens da Igreja, porém, não acreditaram no que se passava. Julgaram Cícero um mistificador, um explorador da ingenuidade popular.
Os relatos do livro referentes a passagens supostamente milagrosas são muito vívidos. Apesar de não ser religioso, Lira Neto não nega de modo taxativo esses eventos. “Algo aconteceu ali”, diz. No texto, porém, deixa transparecer certa ironia com relação a episódios que parecem delirantes. “Uso um pouco de humor. Por outro lado, alimento um profundo respeito pela devoção alheia.”
Para reconstruir tais eventos e o diálogo entre autoridades da Igreja no Brasil e destes com Roma e o tribunal do Santo Ofício, Lira Neto contou com o acervo da Cúria do Crato, onde estão mais de 900 cartas.
Também conseguiu uma fonte de informações valiosa no Vaticano, que não revela. O livro mostra como, suspenso das atividades sacerdotais, Cícero voltou-se para a política. Lira Neto acha que, assim, demonstrou capacidade de reinvenção. “Cícero foi engolfado pelo instante histórico que o gerou. Mas soube se posicionar e sobreviveu a outros beatos, varridos pela história.”
Samba e cachaça
O biógrafo diz querer desconstruir a imagem de místico caricato do líder. Considera-o um homem inteligente e sagaz ao fazer alianças. E muito, mas muito conservador. Era obcecado por reconstituir famílias desagregadas. Posicionava-se contra o samba e a cachaça. O tom de seus discursos, muitas vezes, era apocalíptico.
O autor chama a atenção para os dois universos diferentes que o formaram. “Tinha um pé no universo sertanejo, mas carregava a rigidez do seminário em que estudou. Não era culto, mas lia livros de autores ocultistas. Tinha dificuldade na articulação das ideias e concebia o mundo com simplicidade.
Mas era hábil nas relações e, com isso, manteve-se.” Lira Neto trabalhou mais de dez anos no jornal “O Povo” como repórter e, depois, como ombudsman da publicação. Também é autor das biografias “Maysa” e “Castello”.
Conta que sempre sonhou em escrever a história do Padre Cícero, mas que achava o personagem “grande demais”. A perspectiva de mexer com documentos inéditos o estimulou a ir em frente com o projeto. O jornalista não tem dúvida de que Cícero será absolvido.
Considera que o interesse da Igreja Católica no processo é o de deter o avanço da Igreja Evangélica no Brasil ao atrair para si um ícone popular que costuma levar mais de 2,5 milhões de peregrinos todos os anos a Juazeiro do Norte.
Fonte: Folha Online
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